[Tu não sabes, nem eu quero que saibas, o que tem sido.]
Da agonia prostrada de um Monstro que se recolheu sozinho, sobressai ainda o horror profundo de ter que viver com ele próprio.
Dentro daquela casa, os passos que se ouvem têm hoje sempre a mesma cadência. E são agora acompanhados por mais nenhuns. Mais leves. Mais breves. Idos. Apenas os seus próprios. Arrastados. Vagarosos. Pesados. Infames. Deambulam gravemente por cada divisão.
O ar, denso e doentio, não se deixa dissolver pelo vento que entra livremente. As janelas, lá em cima naquela Torre, estão partidas e abandonadas. Lá, os silêncios a dois, de contemplação, ao som dos copos cheios e dos cigarros, já não existem. A toada continua baixinha e impregnada de fumo e álcool, mas quem ali vive sabe que não soa ao mesmo (ora, deixa-te de merdas, que sabes bem que os silêncios bons são apenas os partilhados- dito de mim para mim, bem entendido).
A casa já não vive de dia. E longe vão os tempos em que a repugnância deste ser passava de sala em sala, à tua procura, e te encontrava no quarto mais luminoso, envolta nos cortinados quase transparentes. Esses, agora, são negros e opacos. As salas estão fechadas, escuras e não querem saber de mim. O chão levantou e range ferozmente, em protesto, à minha passagem. Foge da minha sombra desacompanhada. As paredes, vazias, apodrecem e estão surdas. Os tectos curvam-se e tentam chegar ao piso de baixo. Àquele onde não estou.
Mais uma esquina dobrada, e mais um canto com a tua ausência. Horas são as que passo em frente à porta do teu quarto, a imaginar de como era quando tinha gente dentro. A porta está fechada. Selada. Para sempre.
O eco, da ponta oposta, é trémulo e longínquo. Ele mesmo vai chegando cada vez mais a medo. De repente, um pontapé numa garrafa vazia perturba a quietude momentaneamente. E o silêncio regressa. Persistentemente.
Afasta-se o cortinado roxo da janela, mas ninguém se vê passar. E nem sequer será pelo rigor invernoso de meses passados. Esta, é a mais pura solidão. Cruelmente resumida.
Não há desgosto maior do que ver tudo isto esvair-se. Sem testemunhas.
Na profundeza da solidão que acolhemos, eu e os meus semelhantes caímos frequentemente no incontornável mistério da nossa ascorosa existência. Não no sentido do início da existência em si, nem mesmo no porquê da existência nestes termos (os que nos caracterizam), mas antes sobre a motivação da continuação desta.
Milhares são os anos de aberrações geradas pela Natureza e desde sempre que estas espécies de falhas existem e se escondem.
As desgraças, as catástrofes, são muitas vezes entendidas como um ponto de equilíbrio. Uma forma sádica de controlar o que de bom prolifera. O restabelecer do nível dos pratos da balança. Afinal, uma excepção que confirme a regra. Uma forma de dar uma passo atrás, para se poder dar dois em frente.
Talvez as criaturas monstruosas possam confortar a sua existência sob o pretexto de dar contraste a quem emana beleza. Talvez possamos encarar o que vemos ao espelho como um oposto necessário. Talvez seja melhor ficarmos entretidos com esta passividade, e não deixar que sobressaia o poder nefasto que a nossa monstruosidade nos faz carregar. Pergunto-me se o Vesúvio vive mais aflito com a ameaça destruidora que a sua existência representa, ou se antes se deprime profundamente pela paisagem morta e horrorosa que tem o poder de gerar.
Não existe beleza nem num nem noutro ponto de vista. Por mais que possamos vasculhar as incertezas da nossa existência, não conseguimos nunca ficar afastados da abominável criação que somos. Então, uns manifestam-se abertamente, numa espécie de grito desesperado por reconhecimento. Outros recolhem-se e preferem esconder-se, renunciando à força a razão da sua existência (qualquer que seja ela).
De qualquer das maneiras, surge repetidamente a interrogação inicial. O que nos poderá fazer continuar? Que destino temos traçado e o que é suposto fazer-se dele? Poder-se-á, por um lado, dar largas às faculdades ascorosas que possuímos, fazer delas uma imagem de marca, e vincá-las o mais possível nos tempos de vida, deixando a sua cicatriz como lembrança; Outros, bem mais parvos, contemplam infinitamente a beleza exterior, admirando-a e sonhando com ela. Para sempre com um infinito nó na garganta, típico da paixão fervorosa pela impossibilidade que vamos criando; Outros resignam-se e resumem-se à Torre que os encarcere. São os que não depositam esperança em mais coisa nenhuma. Estes são os que se sentem calejados. Os que se habituaram a não receber o que quer que seja, e a não se atrever a dar o que quer que seja. Talvez sejam os que já passaram pelos estágios anteriores: os de provocar horror, e os de viver irreversivelmente apaixonados. Serão provavelmente os mais frios e difíceis de mover. Mas sobretudo, são os que adormecem a reconhecer que pequenos gestos, pequenas dádivas - quando oferecidas com a genuinidade que pouco reconhecem noutros seres - deverão ser tratadas com a maior das delicadezas. E devem ser mantidas vivas o mais que se conseguir. Se possível, perpetuar. Não esquecer. Conservar.
Não é só o viver-se surpreendido por se sentir que há quem possa ligar aos que são como nós, mas acima de tudo dar valor às intenções que nos chegam nos momentos certos. Segurar agradecidamente as mãos que se estendem quando nos sentimos ir mais e mais ao fundo. E, nestes últimos meses, nada tem sido mais importante que isso. Nada. E responde-se, por agora, à questão de "o que nos faz continuar". São coisas assim.
Yet, enfim, como o Vesúvio, ter medo que a vontade de se manifestar possa provocar o que não se quer. Porque as nossas manifestações são destas, e justificam muito bem o recolhimento na Torre.