Sem testemunhas
[Tu não sabes, nem eu quero que saibas, o que tem sido.]Da agonia prostrada de um Monstro que se recolheu sozinho, sobressai ainda o horror profundo de ter que viver com ele próprio.
Dentro daquela casa, os passos que se ouvem têm hoje sempre a mesma cadência. E são agora acompanhados por mais nenhuns. Mais leves. Mais breves. Idos. Apenas os seus próprios. Arrastados. Vagarosos. Pesados. Infames. Deambulam gravemente por cada divisão.
O ar, denso e doentio, não se deixa dissolver pelo vento que entra livremente. As janelas, lá em cima naquela Torre, estão partidas e abandonadas. Lá, os silêncios a dois, de contemplação, ao som dos copos cheios e dos cigarros, já não existem. A toada continua baixinha e impregnada de fumo e álcool, mas quem ali vive sabe que não soa ao mesmo (ora, deixa-te de merdas, que sabes bem que os silêncios bons são apenas os partilhados - dito de mim para mim, bem entendido).
A casa já não vive de dia. E longe vão os tempos em que a repugnância deste ser passava de sala em sala, à tua procura, e te encontrava no quarto mais luminoso, envolta nos cortinados quase transparentes. Esses, agora, são negros e opacos. As salas estão fechadas, escuras e não querem saber de mim. O chão levantou e range ferozmente, em protesto, à minha passagem. Foge da minha sombra desacompanhada. As paredes, vazias, apodrecem e estão surdas. Os tectos curvam-se e tentam chegar ao piso de baixo. Àquele onde não estou.
Mais uma esquina dobrada, e mais um canto com a tua ausência. Horas são as que passo em frente à porta do teu quarto, a imaginar de como era quando tinha gente dentro. A porta está fechada. Selada. Para sempre.
O eco, da ponta oposta, é trémulo e longínquo. Ele mesmo vai chegando cada vez mais a medo. De repente, um pontapé numa garrafa vazia perturba a quietude momentaneamente. E o silêncio regressa. Persistentemente.
Afasta-se o cortinado roxo da janela, mas ninguém se vê passar. E nem sequer será pelo rigor invernoso de meses passados. Esta, é a mais pura solidão. Cruelmente resumida.
Não há desgosto maior do que ver tudo isto esvair-se.
Sem testemunhas.
14 Comments:
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:\
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Agora tens uma amigo...
(Escreves muito bem, os meus parabéns!)
Thanks. :)
Poderosas as tuas palavras, como sempre.
E dolorosamente belas.
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A tua torre não me é estranha... Há um lugar parecido dentro de mim, onde eu vou às vezes para tentar fugir para sempre. Mas é um esforço vão :)
Não achas que o buraco era capaz de ser insuportável? Estou a falar a sério... Saberias outra forma de viver? Eu não. Mas magoa imenso.
Um beijo meu.
Obrigado Frankie e Anna. :)
Morgana,
Seria insuportável lá estando. Sempre a querer "estar da maneira que não estou".
Ah!, *
a tua torre parece abandonada :|
beijos
Dear Filmy,
É melhor assim, por agora. ;)
*
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