quarta-feira, outubro 21, 2009

O lume que se extingue

Yet again, as primeiras noites frias de Outono regressam. Embora bem diferentes...

Todos parecem querer disfarçar. Todos fingem que não se nota; que nós, os Ascorosos, não descemos como de costume aos sítios comuns.

Intrigante... que destes momentos de horror e nojice lhes possa surgir uma espécie de atracção irresistível, reparo. Nesta altura do ano esperam sempre, a medo, que deambulemos confiantes e esplendorosos pelo seu espaço. Recolhidos na sua beleza - nos dias assim - insignificantes, parecem organizar-se secretamente para apreciar este género de mostra de terror. As suas inquietações sempre nos tornam mais fortes - se assim entenderemos - e deixa-os vulneráveis à nossa magnânima vontade. Têm como certo que nestas breves noites, qualquer um deles pode ver a sua perfeição aleatoriamente escolhida para ser corrompida e conspurcada, de forma ávida e monstruosa, com a repugnância suja que nos caracteriza. Esta é a desgraça mais ousada que podem enfrentar, e o misto do seu pavor com o secreto desejo de experimentar o deleite imundo e depravado do mito que nós somos, solta-se numa resultante tensão de odores sensuais de agonias e prazeres desmedidos.

Mas desta vez não.
Este ano os Monstros mantêm-se recolhidos; e lá em baixo as gentes encostam-se em desassossego, expectantes, sedentos de possuírem novas aberrações reveladas.
Mas nada. As noites chegam, o frio instala-se e... nada.

Enervam-se as gentes, corroídas de curiosidade, enquanto de longe contemplam as janelas frias da Torre, iluminadas por uma candeia das de antigamente. Nesta altura, estas janelas de luz ténue, são o único mistério que pretendem ver desvendado. O deslumbramento destas e os segredos que ocultam, são o que de mais tenebroso e fecundo conhecem; porque sabem que é naquele covil obscuro que se vivem outras vidas, e sonham-se outros sonhos, e sofrem-se outras dores. E não reconhecem tentação maior que vir a sofrer-se a dor dos outros, sabendo que temporariamente.

As horas, os dias, as noites passam e esgotam-se cadenciadamente. E nada...

Um único abominável ser ascoroso passeia o seu assombro... como que perdido. Percorre todas as ruelas cabisbaixo e não fita absolutamente ninguém - não por falta de atrevimento, mas antes por seguir genuinamente desinteressado em cruzar os seus olhos com os de alguém. De forma vil e egoísta percorre os sítios comuns acumulando as suas dores só para si. A sua própria monstruosidade parece padecer de um descuido de quem não liga ao que quer que seja, excepto ao fardo que parece carregar. Pesaroso e vadio, segue lentamente no seu próprio mundo, indisponível para qualquer provocação dos que o seguem caminhar de olhar suspenso. Dele, não surgem quaisquer sinais que possam transparecer sensações - nem boas, nem más. A sua neutralidade irrita quem dele esperava a viscosa aspereza que distingue tão bem os da sua espécie. Fechado nos seus pensamentos, nada se afigura partilhar, deixando fugir apenas a profunda amargura de quem sofre do maior dos desgostos. Os seus olhos, sem chama ou fulgor, sem céu nem inferno... são os do que passa pelas mais hediondas torturas em silêncio. A sua solene passada marca o ritmo a uma marcha que ninguém ousa interromper - não que por ele sintam algum respeito, que quem se encontra exposto neste tipo de fragilidade raramente o consegue obter, mas porque há sempre uma natural compaixão por quem sofre das dores que se manifestam junto ao coração. Uma compaixão por quem se viu forçado a dizer adeus, e caminha agora desolado e incompleto. Nem volúpia, nem erotismo, magnificências ou segurança! Nas primeiras noites frias deste Outono não existem braços descontrolados que chamem uns pelos outros! Apenas um manto de misérias que fazem doer a garganta e o ventre de forma inconfundível, apenas reconhecida por quem tenta (sobre)viver a um amor com tanto de profundo como de não correspondido.

Por largos minutos e imensas horas arrastou o seu pesar por todos os recantos da Vila - indiferente às gentes e ao tempo - sem satisfazer ponta nenhuma da curiosidade dos que dele pretendiam sorver algo que não isto...
Então, no seu desespero irreversível, encostou-se no canto mais desconfortável, e sob a mais triste das melodias, ergueu finalmente o seu rosto fechado, revelando enfim ao seu público inesperado... que...



...tendo - sem remédio - deixado de ser quem sempre foi.

3 Comments:

At 25 outubro, 2009 18:04, Blogger film-m k said...

cuidado dear Ascy...

não ofereças um coração envenenado - poderás ter de volta um amor contaminado...

*

 
At 25 outubro, 2009 23:10, Blogger Escabroso said...

[ :) ]

...ou, quem sabe, encontrar um antídoto que o cure.

De qualquer modo... I'm not really sure if I care...

Nice to have you around. :) *

 
At 26 outubro, 2009 18:44, Blogger Escabroso said...

Além disso, reparei agora, aí vão 4 anos exactos de veneno aqui exposto. :)

 

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