Não acredito que, conscientemente, alguma vez possamos vir a fazer mal um ao outro.
Não possuo o pretensiosismo que me faça achar que tenho o poder de o fazer. Yet, coisas do passado assombram o que sou. A minha natureza, parece, passa por isso mesmo: construir uma teia dissimulada que atraia quem não merece... envolver, abraçar e, mascarado, dar de mim o que é impossível realmente vir a ter. E depois... depois... fazer ruir tudo, miseravelmente, sem aviso, num trovão sem relâmpago.
Fito, sem expressão, estes meus dias estranhos e engasgo-me em tudo o que é de mim. Arranho o visco que me cobre numa espécie de afazer que me enjoa e assusta. Eu sei. Há algo que corre dentro de mim que tomou o controlo.
Há dias que desci ao fundo deste poço, e sei que ninguém dará pela minha falta. E arrisco descer ainda mais fundo...
Não sei bem do que vim à procura (ou do que fujo). Talvez busque sítios que não me deixem descansar. Sonho com lugares que me inquietem de maneira insuportável. Que me cortem, e firam, que sangrem a infecção que trago e que não me deixem tranquilo. Não posso descansar. Não posso ter aqueles momentos antes de adormecer, em que se fantasia e se sonha. Em que se analisa pormenorizadamente a desgraça dos dias. Não posso permitir-me ficar desocupado e ter tempo para mim próprio. Estar comigo próprio é-me insuportável. Quero concentrar-me em descer mais fundo neste poço... o mais fundo que conseguir... até onde seja escuro o suficiente para ninguém me ver. O fundo o suficiente para ninguém me ouvir. E desejar que alguém se lembre de o vir tapar. Conter-me a mim e o que carrego longe do que quer que seja.
Não consigo perceber porque me dói o corpo. Porque o tenho torcido e pendente. Sinto que a minha pele verde se distende e tenta desprender. Os meus ossos fazem-se ouvir, como que num choro enlutado. A minha cabeça dói violentamente e estou tão tão tão tão cansado. Não julgo conseguir aguentar muito mais tempo de pé. Não sinto que alguma vez possa vir a fazê-lo de novo. Interrogo-me que partes de mim estarão ainda vivas; que partes de mim resistem a viver comigo; que partes de mim não manifestam a profunda desilusão de pertencer ao meu corpo. A minha voz, independente da minha vontade, canta músicas de horror, eufórica, louca. Ninguém a ouve. Aceito e deixo-me embalar pelas dores que provoco ao meu corpo. Cada movimento surge num esforço desmedido que me afecta cada órgão de maneira destrutiva. Por desespero admito ceder e espalho energicamente a doença pelo meu peito. Que se espalhe depressa! Que o atravesse depressa! Estranho tudo isto mas compreendo. E não luto contra este abandono. O momento em que as partes que nasceram comigo decidem correr pelas suas vidas. O momento em que nem o meu corpo consegue suportar o que vai em mim. Sinto as minhas carnes, secas, afastarem-se finalmente do meu esqueleto deixando-me unicamente com o que está podre o suficiente para continuar comigo. Pouco de mim resiste ao que me corre nas veias.
Dir-me-iam que é o copo de tinto a falar. Mas só tu sabes do que o meu copo está cheio.
Cada palavra que me escreves; e cada uma que decidas não escrever. Todas as coisas que me revelas; e todas as que mantens reservadas. Todos os sonhos que te contei; e todos os que mantenho em segredo. Todas as lembranças que trago; e todas as que forço - inutilmente - esquecer. Todas as vezes que tive coragem de te dizer o que ia em mim; e todas em que morro de medo de o fazer. Todas as vezes que sonhei, ansiei, jurei trocar tudo, pelo teu toque; e todas as que me encolhi com o aproximar da tua mão. Tudo o que tive o privilégio de receber de ti; e tudo o que não ouso vir a pedir-te.
São tudo pequenas gotas do teu veneno que foram enchendo o meu co(r)po. E pouco mais dele aguentam as minhas veias carregar. Mas em noites assim é-me impossível resistir a tomar mais. Beber tudo de uma vez!
Não quero saber do meu corpo. O que de ti corre em mim assumiu o comando.