...se as tuas visitas aqui têm por objectivo saber como estou, e se a minha ausência te faz supor que ando bem... desengana-te. Continuo triste e infeliz. And there's nothing you can you do about it... Muito, muito triste.
Desta história, tal como a da Checoslováquia, falta o início. Mas comecemos também com um homem que partira de uma vila onde todos viviam descalços. Ao fim de vinte e cinco anos, calçado, regressara a casa casado e com um filho. A mãe dele, juntamente com a irmã, tinham uma estalagem na vila. Para lhes fazer uma surpresa deixara a mulher e o filho noutra estalagem e fora visitar a mãe, que não o reconheceu. Por brincadeira, tivera a ideia de se instalar num quarto como hóspede, usando um nome que não o seu. Durante o jantar mostrara os maravilhosos ténis que trazia. De noite, a mãe e a irmã assassinaram-no à martelada para ficar com tal tesouro.
Daquela porta ao fundo do corredor, sinto vir o mais profundo dos sofrimentos.
A distância, daqui até ali, detém-me irreversivelmente de me aproximar e tentar apaziguar o que quer que seja. Nunca até lá realmente cheguei, mas sei que do outro lado reside o mais maravilhoso dos mundos.
Quase que consigo visualizar os detalhes admiráveis e escabrosos das coisas das quais ela se rodeou; quase que consigo pormenorizar a forma metódica e compassada com que diariamente cuida da sua impecável máscara; continuamente me sinto deslumbrar com a majestosa arquitectura que escolheu para o seu espaço luminoso; julgo até conseguir sentir a aprazível suavidade dos tecidos de todos os mantos com que se cobre; observo, sem estranhar, como da sua altivez parece conseguir manter-se fria e sem esgares de dor; maravilhosa, suprema, divina, e para sempre mergulhada a sós, na dramática insuficiência de tudo isto não ser capaz de preencher o vazio que traz dentro do peito.
Por mim, passam incontáveis criaturas... que não se detêm e chegam mais perto; que lhe chegam e lhe tocam; e que são bem-vindos ou repelidos; ou que são repelidos e bem-vindos.
"Como? Como?" - julgo perguntarem-lhe, incrédulos - "...que tendo tudo, tudo, tudo, para seguires e ser feliz... te permites manter neste incompreensível estado gélido e marmóreo... de quem não acredita em mais nada a não ser no seu próprio silêncio?"
Yet again, as primeiras noites frias de Outono regressam. Embora bem diferentes...
Todos parecem querer disfarçar. Todos fingem que não se nota; que nós, os Ascorosos, não descemos como de costume aos sítios comuns.
Intrigante... que destes momentos de horror e nojice lhes possa surgir uma espécie de atracção irresistível, reparo. Nesta altura do ano esperam sempre, a medo, que deambulemos confiantes e esplendorosos pelo seu espaço. Recolhidos na sua beleza - nos dias assim - insignificantes, parecem organizar-se secretamente para apreciar este género de mostra de terror. As suas inquietações sempre nos tornam mais fortes - se assim entenderemos - e deixa-os vulneráveis à nossa magnânima vontade. Têm como certo que nestas breves noites, qualquer um deles pode ver a sua perfeição aleatoriamente escolhida para ser corrompida e conspurcada, de forma ávida e monstruosa, com a repugnância suja que nos caracteriza. Esta é a desgraça mais ousada que podem enfrentar, e o misto do seu pavor com o secreto desejo de experimentar o deleite imundo e depravado do mito que nós somos, solta-se numa resultante tensão de odores sensuais de agonias e prazeres desmedidos.
Mas desta vez não. Este ano os Monstros mantêm-se recolhidos; e lá em baixo as gentes encostam-se em desassossego, expectantes, sedentos de possuírem novas aberrações reveladas. Mas nada. As noites chegam, o frio instala-se e... nada.
Enervam-se as gentes, corroídas de curiosidade, enquanto de longe contemplam as janelas frias da Torre, iluminadas por uma candeia das de antigamente. Nesta altura, estas janelas de luz ténue, são o único mistério que pretendem ver desvendado. O deslumbramento destas e os segredos que ocultam, são o que de mais tenebroso e fecundo conhecem; porque sabem que é naquele covil obscuro que se vivem outras vidas, e sonham-se outros sonhos, e sofrem-se outras dores. E não reconhecem tentação maior que vir a sofrer-se a dor dos outros, sabendo que temporariamente.
As horas, os dias, as noites passam e esgotam-se cadenciadamente. E nada...
Um único abominável ser ascoroso passeia o seu assombro... como que perdido. Percorre todas as ruelas cabisbaixo e não fita absolutamente ninguém - não por falta de atrevimento, mas antes por seguir genuinamente desinteressado em cruzar os seus olhos com os de alguém. De forma vil e egoísta percorre os sítios comuns acumulando as suas dores só para si. A sua própria monstruosidade parece padecer de um descuido de quem não liga ao que quer que seja, excepto ao fardo que parece carregar. Pesaroso e vadio, segue lentamente no seu próprio mundo, indisponível para qualquer provocação dos que o seguem caminhar de olhar suspenso. Dele, não surgem quaisquer sinais que possam transparecer sensações - nem boas, nem más. A sua neutralidade irrita quem dele esperava a viscosa aspereza que distingue tão bem os da sua espécie. Fechado nos seus pensamentos, nada se afigura partilhar, deixando fugir apenas a profunda amargura de quem sofre do maior dos desgostos. Os seus olhos, sem chama ou fulgor, sem céu nem inferno... são os do que passa pelas mais hediondas torturas em silêncio. A sua solene passada marca o ritmo a uma marcha que ninguém ousa interromper - não que por ele sintam algum respeito, que quem se encontra exposto neste tipo de fragilidade raramente o consegue obter, mas porque há sempre uma natural compaixão por quem sofre das dores que se manifestam junto ao coração. Uma compaixão por quem se viu forçado a dizer adeus, e caminha agora desolado e incompleto. Nem volúpia, nem erotismo, magnificências ou segurança! Nas primeiras noites frias deste Outono não existem braços descontrolados que chamem uns pelos outros! Apenas um manto de misérias que fazem doer a garganta e o ventre de forma inconfundível, apenas reconhecida por quem tenta (sobre)viver a um amor com tanto de profundo como de não correspondido.
Por largos minutos e imensas horas arrastou o seu pesar por todos os recantos da Vila - indiferente às gentes e ao tempo - sem satisfazer ponta nenhuma da curiosidade dos que dele pretendiam sorver algo que não isto... Então, no seu desespero irreversível, encostou-se no canto mais desconfortável, e sob a mais triste das melodias, ergueu finalmente o seu rosto fechado, revelando enfim ao seu público inesperado... que...
...tendo - sem remédio - deixado de ser quem sempre foi.
[Tu não sabes, nem eu quero que saibas, o que tem sido.]
Da agonia prostrada de um Monstro que se recolheu sozinho, sobressai ainda o horror profundo de ter que viver com ele próprio.
Dentro daquela casa, os passos que se ouvem têm hoje sempre a mesma cadência. E são agora acompanhados por mais nenhuns. Mais leves. Mais breves. Idos. Apenas os seus próprios. Arrastados. Vagarosos. Pesados. Infames. Deambulam gravemente por cada divisão.
O ar, denso e doentio, não se deixa dissolver pelo vento que entra livremente. As janelas, lá em cima naquela Torre, estão partidas e abandonadas. Lá, os silêncios a dois, de contemplação, ao som dos copos cheios e dos cigarros, já não existem. A toada continua baixinha e impregnada de fumo e álcool, mas quem ali vive sabe que não soa ao mesmo (ora, deixa-te de merdas, que sabes bem que os silêncios bons são apenas os partilhados- dito de mim para mim, bem entendido).
A casa já não vive de dia. E longe vão os tempos em que a repugnância deste ser passava de sala em sala, à tua procura, e te encontrava no quarto mais luminoso, envolta nos cortinados quase transparentes. Esses, agora, são negros e opacos. As salas estão fechadas, escuras e não querem saber de mim. O chão levantou e range ferozmente, em protesto, à minha passagem. Foge da minha sombra desacompanhada. As paredes, vazias, apodrecem e estão surdas. Os tectos curvam-se e tentam chegar ao piso de baixo. Àquele onde não estou.
Mais uma esquina dobrada, e mais um canto com a tua ausência. Horas são as que passo em frente à porta do teu quarto, a imaginar de como era quando tinha gente dentro. A porta está fechada. Selada. Para sempre.
O eco, da ponta oposta, é trémulo e longínquo. Ele mesmo vai chegando cada vez mais a medo. De repente, um pontapé numa garrafa vazia perturba a quietude momentaneamente. E o silêncio regressa. Persistentemente.
Afasta-se o cortinado roxo da janela, mas ninguém se vê passar. E nem sequer será pelo rigor invernoso de meses passados. Esta, é a mais pura solidão. Cruelmente resumida.
Não há desgosto maior do que ver tudo isto esvair-se. Sem testemunhas.