Petrificado
I
A acomodação é uma conveniência, um estado de torpor, um marasmo, que nos enrijece e petrifica. Sou de mármore manchado.
Um ser torpe, adormecido, mergulhado na corrente, inerte, de olhos abertos e bem fechados, na escuridão de um quarto, um sepulcro, adormecido. O ar, estagnado, viciado, pesa nas pálpebras e na mente. Espíritos trôpegos adoecem e desistem. Nada se sente. Tudo amorfo e cru. Anestesiado. Apenas e só uma prostração mórbida e um eco vago, familiar e horrorizado... que embala. Uma sumptuosa teia, premeditada, elástica e paciente. A acomodação. A rotina.
II
Um olho entreaberto e uma ténue inquietação súbita. Muito, muito, muito devagar. Um pontinho, reluzente, muito pequeno e longínquo, que seduz. Cortinas reanimadas afagam-me o rosto e fazem soar o atrito enquanto tropeça na aspereza peluda desta criatura, esquecida, dormente, desabrida, acre.
Uma mão, pálida mas decidida, que se estende e adianta. Unhas douradas em dedos ornamentados prolongam-se de um punho em folhos. Uma figura lúbrica dissimulada pela luminosidade que a parece acossar. Tinta escarlate escorre e verte das paredes... e ela está ao pé de mim.
Cabelo amordaçado e submisso. Sobrancelhas finas, desenhadas e sobrelevadas, numa manifestação magnânime de confiança. Os olhos frios, glaciais e seguros, contornados, (sempre) contornados por uma risca negra e rasgada. A boca, púrpura, primorosamente desenhada, solícita e tão, tão venenosa.
III
Que visão perfeita. Que visão perfeita. Que visão perfeita.
IV
A música envolvente, voluptuosa, acompanha uma demonstração desmedida de tentação e feitiçaria. Empolgante e sob uma cadência épica, a atmosfera revoluciona-se. Tudo é luz e energia, vontade a sentir. Palavras secretas segredadas escondem o tiritar de uma língua bífida e irresistível. Misteriosa, fabulosa, obscura, deliciosa, insaciável, tudo está ao alcance do seu poder. A mão, estendida. Aquele sorriso, como uma lâmina fina e tortuosa que escreve paixão no meu pescoço, e me leva à insanidade. Estou acordado. Em segredo, de olhos mesmo abertos, braços estendidos, mente hipnotizada.
És linda e perfeita. Tudo o que fazes, tudo o que dizes, e mesmo o que não dizes. Quem és tu e donde vieste? Porque vieste ter comigo? Olhos teus que tiveram coragem de se cruzar com os meus. Afastas-me o medo e fazes-me sonhar... acordado! Estou acordado e troco tudo por ti. Porque o meu sonho era imaginado sozinho, e agora troco-o integralmente por ti. O meu sonho és tu. Quero libertar-me de tudo. Quero libertar-me para ti. Leva-me. Vejo a tua mão. O teu sorriso. O teu veneno corre-me nas veias. Estás em mim. Sou teu. Nada em mim tem significado senão suportado pelo alicerce do teu veneno. Morde-me e mantém-me acordado. Êxtase. Paixão. Que violência e beleza. Que visão perfeita. Que visão perfeita. Que visão perfeita. E a tua mão tão perto... e nada me impedirá de lhe tocar. Nada... a não ser... a não ser... a não ser... eu próprio...
V
Não vás... ainda agora chegaste. Eu sei que disse "não". Temos um beijo prometido. Temos "o" beijo prometido. Eu sei que preferi esperar. Eu sei que demorei... e que estiveste aí, de mão estendida. Não vás... não vás, visão perfeita. Não vás. Não vás...
VI
Dor e agonia. E o sono é mesmo amante da morte.
Porque me acordaste tu? Preferia que... prefiro... a isto prefiro ser de pedra... a ser do teu mármore. Manchado. Em modorra. Preferia não saber. Preferia que tivesses sido um sonho. Que visão perfeita, que em assombro me atormentas e me fazes definhar. Quero dormir. Quero dormir. Quero que sucumba a tua lembrança desta cripta onde agora vivo. Quero fechá-la de maneira a ter a certeza que não voltas. Limpar o teu veneno destas paredes... e do meu sangue...
Tudo menos isto.
VII
Prefiro ser de pedra. Do teu mármore.
1 Comments:
tudo menos isto.
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